A NOIVA (EXTRAÍDO DO ROMANCE IMORTALIDADE)
A secretária entra na suntuosa sala decorada com móveis antigos, traz consigo um tablet aberto. Depara-se com sua chefa olhando pela janela da sala, a floresta de prédios de vidro e concreto da cidade.
-Doutora Aline...
Aline escuta uma voz bem distante, que lhe traz de volta ao presente.
-Hã…
-Desculpe-me. A senhora estava distraída, percebi.
-Sim, Antonia, estava olhando daqui de cima, o quanto essa cidade modificou-se.
-Temos uma reunião agora, doutora.
-Passe-me o dossiê dos novos contratados. - Aline pega as pastas dos candidatos e observa as informações gerais do perfil.
-Jean de Almada, formado em administração pela FGV, Aniela Crawford, formada em direito por Stanford. Adam Silva, formado em direito em Yale. O nível está bom. Fizemos boas aquisições dessa vez, Vamos lá, conhecer esses jovens. - A executiva vai até a outra sala seguida por sua assistente.
Quando a doutora Aline entra na sala de reuniões, os jovens recém-contratados levantam-se. Lucila apresenta um a um, quando foi a vez de apresentar Adam, Aline empalidece, sua pressão baixa e ela desmaia. O jovem surpreso com aquela reação, corre para ampará-la, antes que caia no chão, forma-se um pequeno alvoroço na sala.
Um casal anda a passos rápidos e de mãos dadas pela floresta negra. Não conseguem correr, porque já estão muito cansados. Pode-se ouvir latidos de cães cada vez mais perto. A moça cai algumas vezes, é sempre amparada pelo jovem que a acompanha.
-Vamos amor, vamos, eles estão perto de nós.
-Não aguento mais, meus pulmões estão estourando, me deixe, salve-se, salve-se! - A jovem tenta empurrar o amado.
-Não vou deixá-la aqui, vamos. - Ele a puxa insistentemente.
O jovem a coloca nas costas, caminha com dificuldade pela floresta, a neve está fofa, o esforço é descomunal. Enfim os cães os alcançam. Ele a joga pra trás de si e a protege com seu corpo, enquanto os cães o mordem sem piedade. Pedaços do casaco e de carne se esfacelam a cada mordida impiedosa.
Pouco depois a milícia também os alcançam, o líder assovia, os cães se afastam. O jovem ensanguentado fica de pé com dificuldade, coloca as mãos pra cima, Lucila se levanta fica ao lado dele. O braço direito está destroçado, com a mão esquerda faz pressão pra diminuir o sangramento. Apesar da dor, ele a olha serenamente e sorri, como se tentasse tranquilizá-la . Em seguida ela escuta um barulho de tiro de fuzil, seu rosto fica tomado pelo sangue de seu amado. Ela grita, enquanto o corpo dele, com a cabeça estourada cai de joelhos. Novamente o líder assovia, os soldados começam a rir, avançam em Lucila que está em estado de choque. Eles a estupram impiedosamente, enquanto ela não consegue parar de olhar o corpo sem vida de seu amado perto dela. Depois que o último dos soldados milicianos a usou, o líder vai até Lucila, acaricia seu rosto, puxa a pistola, atira na cabeça dela. O sangue espalha-se na neve, formando uma grande poça rubra ao redor. A neve branca e a floresta virou escuridão.
Lucila não tem ideia de quanto tempo ficou ali desmaiada, só sabe que quando despertou, a primeira coisa que viu foi alguns lobos ao seu redor comendo o corpo de seu amado. Ela levanta com dificuldade, a matilha a encara, os lobos rosnam, depois vão embora. Ainda desnorteada, Lucila lembra que os homens a tinham estuprado, lembra do líder deles apontando a arma pra cabeça dela. Ela passa a mão na testa, há sangue pisado, mas não há buraco, a bala deve ter se desviado, pensou. Depois de cavar uma cova rasa, enterra seu companheiro e parte dali.
-Onde estou? - Pergunta Aline ao despertar.
O médico se aproxima, verifica o pulso e a pupila de sua paciente.
– A senhora está na ala médica da empresa. Desmaiou no meio de uma entrevista. –Enfim responde.
-Sim, sim me lembro. Estou melhor agora. - Aline desce da maca e procura suas coisas.
– A senhora está sob observação, após os exames eu direi se já está bem ou não. - O médico a conduz novamente a maca.
Três horas depois, Aline finalmente é liberada, É levada pelo motorista da empresa até o seu apartamento junto com suas coisas, os dossiês dos recém-contratados. Em casa, deitada no sofá, Lucila vai justamente na pasta do Adam pra checar se o que vira era verdade.
-Meu Deus! - Admirou-se ao constatar a incrível semelhança com alguém do seu passado. Lágrimas descem de seu rosto.
-O que é isso, Olavo? - Pergunta Lucila, bem curiosa.
-Mantimentos, amor. Estou guardando nas mochilas. Temos que partir, as milícias servias estão invadindo as vilas, estão matando todos os muçulmanos, temos que fugir imediatamente.
-Não podemos abandonar tudo, deve haver um jeito. - Protesta Lucila.
-Lucila, eles estão estuprando e matando as mulheres, há só barbárie e morte por onde passam. -Mal, ele termina de falar e já se pode ouvir as tropas chegando a cidade em seus caminhões pesados. Olavo puxa Lucila, os dois entram no carro e saem, sob tiros de metralhadora.
Com a guerra civil, comida e combustível ficaram escassos, foi assim que depois de alguns quilômetros, o carro começou a demonstrar que estava sem combustível. O desespero e frustração de Olavo faz com que ele xingue e bata no carro. O carro responde a agressão com solavancos, então finalmente estanca, os dois abandonam o carro, correm para dentro da floresta negra que está na marginal da rodovia. Eles sabem que havia no mínimo uma milícia atrás deles. Está tudo tomado pelas neves, andam com dificuldade e os rastros que deixavam era facilmente detetectado. Lucila cansa logo e ele a puxa desesperadamente.
-A senhora quer falar comigo? – Adam entra com certa timidez na sala de sua chefa.
-Sim, sente-se. - Aline aponta para a cadeira.
-A senhora está melhor?
-Ah, aquilo não foi nada, minha pressão baixou, por favor, me chame só de Aline.
-Ta certo, senhora….digo, Aline. -Os dois riem.
-Li seu curriculum, Adam, vi que você se formou com louvor em Yale.
-Sim, sempre quis fazer direito, então realmente me apliquei como aluno.
-Não vi de onde você veio aqui no dossiê. Estou curiosa.
-Minha família é de imigrantes. Somos do Leste Europeu.
-Imigrantes? Como assim? – Aline empalidece.
-Viemos da Croácia, um pouco antes da guerra civil. Eu era um bebê.
-Um bebê?
-Sim, sim.
-Como é o nome do seu pai?
-Meu pai?
-Sim, seu pai.
-Vim com minha mãe e meu avô materno. Não sei quem é meu pai, minha mãe não fala sobre o passado dela. -Ele fica desconcertado ao responder aquela pergunta. Ela nota.
-Desculpe a pergunta, achei você parecido com alguém do meu passado, ambos éramos da mesma região na croácia.
-A senhora é imigrante também?
-Sim, vim também no mesmo período.
-A senhora estava lá durante a guerra civil?
-Sim, estava.
-Mas….
-Mas, o que?
-A senhora…
-Já pedi pra me chamar de Lucila.
-Desculpe, Lucila, você não parece ser muito mais velha do que eu.
-E não sou.
Aline percebendo a estranheza no rosto de Adam, desconversa, a secretária entra e leva o recém-contratado. Ela fica intrigada com o fato dele ter vindo da mesma região da Croácia, quando ainda era bebê. Não, não pode ser, pensou. Ela aperta o botão, a secretária volta.
-Me consiga o endereço dos familiares desse rapaz, por favor.
Aline olha mais uma vez o endereço na folha de papel, o número era 324, o sobrado em frente era o 324. Ela toca a campainha, ouve uma voz dizendo que vai atender. Até que a porta se abre.
-Você?- Surpreende-se a senhora ao abrir a porta.
-Marija?
-Não... sabia que você estava aqui, nesse país. Pensei que tinha morrido na guerra. É você mesma? É a Lucila?
-Sim, sou eu. Marija!
-Entre, por favor. – A dona da casa desconcertada e trêmula, não acredita no que está vendo a sua frente. -Como você pode estar viva?
-Eu fui poupada pela milícia, Marija. - Aline mente pra velha conhecida.
-E como você continua jovem? Como pode ser isso, Lucila? - A velha pega no rosto de Aline.
-Isso é uma longa história. Adotei outro nome, quando chegue neste país, aqui sou chamada de Aline.
-Como você descobriu meu endereço neste país?
-Seu filho trabalha na minha empresa, Marija.
– Adam? É seu empregado?
-Sim, isso mesmo.
-Ele é muito parecido com o....- Marija empalidece e se senta. aline a encara.
-Perdão Lucila, perdão, perdão...- Marija chora.
-Então ele é filho do ….
-Sim, sim, é filho dele. É o filho do Olavo.
-Vocês me traíram! – O rosto de Aline se avermelha em fúria.
-Não a outra palavra pra descrever. Foi isso mesmo, mas ele nunca me quis, sempre te amou. - Confessa a velha amiga.
-Amou? - Pergunta ceticamente Aline.
-Sim, eu que o seduzi, na época você estava fazendo faculdade na capital, só voltava para o vilarejo nos finais de semana. Foi isso. - As duas choram.
-Você me perdoa, Lucila? Você me perdoa por tudo? –A senhora pega na mão de Aline cheia de culpa e remorso. A mão estava trêmula, embora segurasse firme.
-Marija, faz tanto tempo isso, embora me sinta traída, não guardarei mágoa de t....
-Obrigado Lucila, obrigado! - A velha Marija a abraça, não deixando Aline completar a frase..
- Mas não posso prosseguir sem a devida reparação. - Completa a frase Aline.
-Reparação? - Marija demonstra surpresa com aquela ressalva.
Eram nove e trinta da manhã, Aline se olha mais uma vez no pequeno espelho que carrega, desce a limusine, entra na igreja que está decorada com flores típicas do leste europeu, todos a admiram, estava exuberante, linda, a sua frente Adam, agora seu noivo, a espera no altar.
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