Os Imortais - bênção e Maldição
A JUDIA
Depois que o trem diminuiu a velocidade e parou, a porta do vagão abriu-se, e a claridade da luz invadiu a escuridão onde estávamos amontoados, sentimos os olhos queimarem com a luz repentina. Alguns segundos depois ainda com as mãos protegendo nossos olhos, bem à nossa frente formou-se um corredor de soldados nazistas que gritavam cheios de ódio, xingamentos em alemão. Cada um segurava com dificuldade a coleira de um grande cão feroz, que babava e latia sem parar, a sensação é de que se o soltassem, seríamos devorados ali mesmo.
Os soldados mandaram todos que estavam nos vagões do trem correrem para o pátio do prédio que ficava atrás da estação. Gritavam e gesticulavam para que tirássemos as roupas, não havia tempo para sentir vergonha ou frio naquele dia de inverno rigoroso. Éramos agora centenas de mulheres e crianças despidas, amedrontadas e fragilizadas por uma longa viagem sem água e comida, em vagões lotados sem higiene. Um homem calvo, esguio e extremamente alto, aparentando ter um pouco mais de cinquenta anos, vestido em um jaleco branco, apareceu diante de nós para nos examinar. Com sua voz tranquila e suave, avisava que iríamos tomar um banho para nos desinfetar, receberíamos roupas novas e comida.
-Não se preocupem com nada. - dizia sorrindo serenamente para fila indiana que caminhava até os banheiros coletivos.
Em outro tempo, perto do campo de concentração, em uma cabana caindo aos pedaços, o aprisionado implora a sua captora.
-Cof, cof, senhora por favor, cof, cof, a senhora poderia me dar um pouco de água…- balbucia a minha presa, enquanto filetes de sangue e baba escorrem de sua boca arrebentada.
-Quieto, ordinário! - grito ao mesmo tempo que tento conter as lágrimas ao relatar o início de minha história.
-Cof, cof…-Ele tosse mais uma vez e abaixa a cabeça ou desmaia.
Enquanto a fila de centenas de mulheres e crianças despidas caminham para o setor indicado pelo médico. Uma moça polaca tenta puxar conversa com uma senhora mais velha.
-Aquele senhor disse que era para nos desinfetar antes de nos acomodar? - a moça alta e magra perguntou pra alguém.
A velha não entende polonês, apenas olha com seus olhos fundos e assustados, enquanto segue em frente.
-Foi sim, foi sim, vamos receber roupas novas. - respondeu a senhora que estava ao lado dela, mostrando um sorriso nervoso e quase sem dentes.
-Não sejam tolas, quem entra aqui, não sai vivo.- disse baixinho, uma outra moça que usava um lenço branco na cabeça, mostrava-se resignada com seu destino.
A expressão no rosto de todas era de medo, receio, apreensão com o que estava por vir. Éramos uma manada indo ao matadouro. Após o último grupo de mulheres e crianças entrarem, as portas dos banheiros fecharam-se por fora com força, as luzes apagaram-se, todas começaram a gritar, cheias de pânico, enquanto uma fumaça fétida começava a vir do teto do banheiro. Meus pulmões queimavam ao respirar, eu buscava fôlego, não havia ar, só a fumaça que queimava as narinas, a garganta, os pulmões.
-Veneno! - alguém gritou naquela escuridão.
As pessoas caíam em cima das outras tendo convulsões, outras tentavam fugir da nuvem letal, indo para perto das portas de saída, muitas eram esmagadas pela multidão que se aglomerava nas portas de saída. Tentávamos sair dali a qualquer custo, lembro que tropecei em vários corpos caídos, enquanto meu peito ardia por dentro, eu arranhava a parede com força, não sentia minhas unhas quebrarem, só queria sair dali de qualquer jeito. Tudo se resumia na busca de ar. Ar! Não havia ar, só escuridão.
Oficialmente o inverno começou ontem no calendário, porém hoje com a temperatura baixa, começou a nevar de fato. Abro minha mão para sentir os flocos de neve tocarem a palma. Observo a forma hexagonal perfeita de um desses cristais de gelo se desfazer e virar água. A natureza é perfeita, reflito.
Um carro buzina para chamar minha atenção, dentro do carro Adriano acena para que eu entre logo. Enquanto ele me conta suas peripécias no trabalho novo, ligo o rádio do carro e vou selecionando os canais. Música eletrônica, música clássica, música pop. Uma entrevista. O entrevistado fala sobre Auschwitz, diz que não há provas que ali houve um campo de extermínio, dizia que tinha sido tudo invenção dos russos e americanos. Meu sangue ferve, começo a esmurrar o rádio do carro. Adriano segura minha mão.
-Ei, ei, o que foi amor? - Adriano diz com um tom de voz tranquilizador.
-Eles não sabem de nada! Eles não tem ideia! - choro compulsivamente.
-Calma, amor. Todos nós sabemos de parentes ou pessoas que sofreram lá. Ele é só um daqueles Neonazistas querendo chamar atenção. Acalme-se! - Adriano afaga meus cabelos, enquanto me acalmo. Engulo meu choro, minha raiva, fico em silêncio durante o resto do trajeto.
Após o jantar, ligo meu laptop e começo a pesquisar na internet sobre o entrevistado. Descubro que era bisneto de um oficial nazista, que o oficial morrera na prisão militar da Rússia após a guerra. Anoto o endereço e o número do telefone dele. Gustavo Baden, celular número: 00481299581475
Gustavo entra na sala de professores no departamento de História, é professor titular da Universidade de Krakov. Todos o cumprimentam pela entrevista na rádio, A entrevista batera recorde de audiência. É um ano eleitoral e após décadas de governo progressista, o desgaste natural de tantos anos no poder, fez com que os partidos mais radicais de ultradireita conseguissem mais simpatia popular. Almeida é o único que não o cumprimenta de imediato, mas observa com atenção o colega que acabara de entrar. Até que finalmente fala.
-Essa sua tese de que não houve campos de extermínio na Alemanha ou aqui mesmo na Polônia, ainda vai te trazer muita dor de cabeça, amigo. - profetiza Almeida esboçando um leve sorriso irônico, enquanto acena com o cachimbo.
-Já me traz Almeida, mas somos cientistas, historiadores sérios, sabemos mais do que ninguém que a história é escrita por quem vence. Os derrotados sempre são pincelados com camadas grossas de tons sombrios. - Gustavo responde, enquanto coloca café na xícara.
-Todavia, o fato de você estar associado a um antepassado que era oficial nazista pesa muito nas críticas, você sabe disso. Falta o distanciamento necessário para observação científica imparcial. Lembre-se que os radicais vão usar esses seus estudos para ganharem mais apoio popular- Almeida adverte o colega.
-E quem não era nazista naquela época? Hitler não foi ao poder sozinho. Teve o aval de todo o povo. Que por sinal o amava sem restrições. Todos nós temos parentes que foram nazistas no passado. - diz Gustavo antes de levar outra xícara de café ao velho amigo e oponente intelectual.
-Gustavo...sempre com respostas para tudo! - Almeida, balança a cabeça, diante da teimosia do colega.
Os dois sorriem juntos, enquanto bebem mais um gole de café.
Era cedo, quando Gustavo retornou ao lar, a esposa brincava com os dois filhos menores na frente da casa. As crianças quando o olham, gritam.
-Papai, chegou! Papai, chegou! - festejam as crianças.
Gustavo corre na direção deles, pega-os pelo braços e os gira no ar até caírem no monte de neve que se formara no jardim em frente da casa.
-Meus macaquinhos lindos, estava com saudade de vocês. - diz beijando-os várias vezes na cabeça.
-Vamos entrar todos, está muito frio aqui fora, ainda tenho que preparar o jantar. - ordena a esposa de Gustavo, ajudando-o a levantar.
Do outro lado da rua, em seu carro, ela observa indiferente, impassível a cena que mais parecia de propaganda de margarina. Gustavo para ela, não era mais um ser humano, era um maldito porco Neonazista, querendo espalhar mentiras sobre o que de fato aconteceu no passado. Em sua mente vem em seguida, os rostos de sua família, da felicidade deles antes da guerra. Seus pais, seus filhos e seu amado esposo reunidos a mesa farta para comemorar o Shabat. Sua família, uma frágil e confusa lembrança agora. Todos que amou, exterminados em campos de concentração durante a guerra. Lágrimas escorrem pelo seu rosto e pingam no guidão do carro.
O celular de Gustavo toca, a esposa o avisa.
-Seu celular está tocando, amor!
-Ok, ok, já vou atender. - ele corre até a sala de jantar, onde tinha deixado o aparelho. - Alô?
-É Gustavo Baden? - uma voz feminina pergunta.
-Sim, sim! Ele mesmo!
-Tum. Tum. Tum. - ela desliga o telefone.
Gustavo estranha o fato, mas acha que caiu a ligação. Pelo cheiro que vinha da cozinha o jantar estava pronto, parecia estar delicioso. Vitela assada com ervas! Não ia ser a preocupação com um telefonema de uma desconhecida que ia estragar seu apetite agora.
Do outro lado da rua, apertando o celular ao peito, Ela está transtornada por ouvir a voz daquele safado defensor de nazistas. Ele tem que saber a verdade, ele tem que saber, decidiu.
Alguns dias depois, dois policiais batem à porta, a esposa de Gustavo com o rosto inchado de chorar atende.
- Boa noite senhora, recebemos uma reclamação sua que seu marido sumiu faz doze horas e que a senhora não tem notícias dele. - diz o policial verificando as anotações.
-Ele nunca fez isso, aconteceu alguma coisa com ele, tenho certeza. - a esposa responde em prantos.
-Vocês brigaram, discutiram por algum motivo? A senhora sabe, às vezes isso acontece. - pergunta o policial mais alto.
-Oh, meu Deus, claro que não, não!. Somos felizes, nunca brigamos sério. Algo aconteceu com ele, tenho certeza. - protesta a esposa.
-Calma, senhora Baden, vamos procurá-lo, logo daremos notícia, isso se ele não entrar em contato antes. - tenta o policial mais baixo tranquilizar a esposa do professor desaparecido.
Enquanto se dirigem até o carro, o policial mais alto que estava mais cético durante a conversa com a esposa do desaparecido, pergunta ao outro.
-Então o que você acha?!
-Tá cedo, na verdade, depois de vinte e quatro horas é que se caracteriza esse tipo de ocorrência. Ele pode muito bem aparecer daqui a pouco. Pode estar dando um tempo. Enfim vamos averiguar melhor amanhã.
No exato momento que os policiais cogitam o paradeiro de Gustavo, em uma pequena cabana a dezenove quilômetros, no meio de um bosque, duas pessoas estão iniciando uma conversa crucial.
-Obrigado por tirar a mordaça, estava doendo. - Gustavo move a boca e o maxilar de um lado para o outro. Sente com a língua, o sangue de uma pequena ferida no canto da boca. Distraído nessa averiguação, não se dá conta do forte soco de direita no queixo. Zonzo com a pancada, tenta focar a imagem de sua captora a frente.
-Você sabe por que eu te trouxe para cá? Você sabe? - ela vocifera.
-Não, não de forma alguma, deve ter ocorrido um engano. Você me confundiu com alguém. Tenho família e uma hora dessas, minha…. - Gustavo responde nervoso e confuso.
-Cale a boca! Cale a boca! Você fala demais, cale-se! - ela grita mais uma vez, soltando saliva entre os dentes.
-Desculpe, desculpe! - Gustavo tenta amenizar a irritação que causara em sua captora. Enquanto se dá conta, que o rosto ficara dormente, na região que levara o soco.
- Seu crápula, nojento! Você insiste em dizer a todos que não houve campos de extermínio na Polônia e na Alemanha. Que tudo fora uma farsa da Rússia e dos Estados Unidos. Mentiroso desgraçado!!!
Gustavo agora se dá conta que não houve engano nenhum, que o motivo de estar ali, tem a ver com sua visão da segunda guerra mundial, era sobre os campos de extermínio nazista. Mas quem será ela? Pergunta-se. Diante dessa constatação, sabe que sua vida corre risco de verdade.
-Por favor, se lhe ofendi, então desculpe por minha opinião, não quis ofender ninguém, sou historiador e.…- Gustavo tenta conciliar sobre a questão, ele quer sair vivo dali de qualquer forma.
-Cale a boca. Verme, miserável! Escute o que vou te dizer, escute bem! - ela grita descontrolada.
O historiador percebe que estava piorando tudo, tentando se explicar, temendo por sua vida, fica em silêncio, abaixa a cabeça. Sua captora agarra as orelhas dele e o encara bem de perto. Os olhos dela quase saltam das órbitas oculares de tanto ódio que expressam.
-Meu nome é Ilka Jung, mas já tive um outro nome, há muito tempo atrás, chamava-me Judite Steiner, eu e minha família viemos da Ucrânia de trem e fomos todos assassinados no campo de concentração de Auschwitz em 1943.
-Você disse assassinados? Como assim? Eu não entendo... – a expressão de Gustavo é de incredulidade diante daquela revelação.
-Eu não sou louca, Sr. Gustavo, eu fui colocada em uma câmara de gás com 300 mulheres e crianças, todas judias iguais a mim, fomos asfixiadas com gás inseticida, mortos como se fôssemos insetos.
-Mas...como? Isso é impossível, a senhora deve ter no máximo 30 anos ou menos. Mesmo se tivesse sobrevivido, deveria ter 89 anos no mínimo. Eu não entendo. - o historiador responde sem conseguir encarar novamente Judite.
-Eu tenho um pouco mais do que isso na verdade, veja.
Judite saca do bolso da jaqueta algumas fotos antigas e mostra. São fotos dela junto com seus pais e irmãs, depois uma foto com o esposo e os filhos. Suas mãos estavam trêmulas. Gustavo obrigado a ver as fotos, constata a incrível semelhança de sua captora, Judite com a moça das fotos.
-Incrível! Quanta semelhança! Era sua avó? É por isso que a senhora está tão irritada com o meu trabalho?- ele pergunta sem entender direito nada daquilo que ele estava ouvindo e vendo, aquele relato não fazia sentido algum.
-Essa sou eu, sou eu! Eu continuo viva e jovem. Você não faz ideia da quantidade de pessoas que foram assassinadas naquele período, famílias inteiras, aldeias inteiras dizimadas. - nesse momento Judite começa a chorar ao lembrar novamente dos familiares mortos.
-Ainda duvida, veja meu braço! Veja essas marcas! - Judite puxa a manga da camisa que cobria o antebraço e mostra marcas claras que assemelhavam a números. Mesmo desfeita a tatuagem, ainda ficaram resquícios das tatuagens que era feitas obrigatoriamente em judeus que iam aos campos de concentração.
-Mas como pode ser isso? Você mesmo disse que morreu ainda jovem? Eu não entendo! A senhora precisa de ajuda. Conheço pessoas que...- balbucia Gustavo, sentindo fortes dores.
-Não! Não! Não! Eu não sou louca, seu maldito! Eu não sei o que aconteceu, só sei que morri naquela câmara de gás e que depois estava novamente viva. Acordei um pouco distante do campo de concentração, perto dessa cabana de caça..- Judite afasta-se do professor de História, encolhe-se no canto da cabana, reviver aquilo, trazia dores que a dilaceravam por dentro.
- Moça, escute, por favor, eu preciso conhecer mais a sua história, levantar mais dados. Eu preciso entender esse seu lado da história, seu sofrimento é genuíno, posso sentir. Desculpe-me, se...se ofendi a memória de seus entes queridos - Gustavo compadece-se com o sofrimento daquela moça que se contorce em lágrimas e dor no cantinho da cabana.
Após ouvir aquelas palavras de Gustavo, Judite parece despertar, ela se levanta, enxuga as lágrimas do rosto e olha resoluta para ele. Gustavo se estremece com aquele olhar, agora ele temia que aquela moça o ferisse de verdade.
-Judite, você precisa de ajuda médica, por favor, liberte-me, farei tudo que for possível para que você receba tratamento médico adequado. Não me machuque, por favor, tenho família, amo meus filhos, minha esposa, por favor- apela o historiador.
Judite o olha nos olhos novamente. Não há piedade nos olhos dela. Ela se vira lentamente e pega um pedaço de pau pesado que estava encostado na parede da cabana.
-Não por favor, não faça isso, por favor, quero ver meus filhos, minha família, por favor. - Gustavo explode em choro e desespero.
Judite de maneira rápida e implacável acerta uma forte paulada na cabeça de Gustavo. Crackkkk! O crânio dele parte-se ao meio feito, os olhos saltam das órbitas oculares e pequenas manchas de sangue respingam na parede de toras de madeira da cabana. O sangue escorre pela parede até pingar no chão. A assassina exausta com aquele turbilhão de emoções que sentira, senta-se ofegante no chão imundo, enquanto encara o corpo sem vida de sua vítima. Não é o crânio rachado e os olhos saltados do professor a sua frente que vê, mas os rostos de todos os soldados nazistas que vira naquele campo.
O trem está chegando a estação de Auschwitz, pelas frestas os passageiros observam uma grande coluna de fumaça negra sair de uma chaminé. Quando o trem pára na estação, desce dos vagões uma nova leva de prisioneiros, composta em sua grande maioria por mulheres e crianças. Essas pessoas não param de olhar a coluna de fumaça negra que sai da chaminé. Elas se perguntam se é uma fábrica ou uma siderúrgica. Os soldados impacientes começam a gritar com todos, apontam armas, enquanto pastores alemães latem e tentam abocanhar aquelas infelizes que correm amedrontadas até o pátio do prédio. As cinzas que saem da fumaça negra da chaminé, começa a sujar a roupa delas.
Um pouco longe dali, alguns pontos pretos daquela fuligem caem na neve branca na entrada do bosque de pinheiros. Minutos depois os pontinhos pretos caídos na neve juntam-se e a cor muda lentamente para o vermelho escarlate. Algo invisível aos olhos humanos, começa a acontecer, células em um processo acelerado de meiose, formam um óvulo, depois um pequeno embrião que vai assumindo as características de um feto, em poucos minutos já tem a forma de um bebê recém-nascido que começa a amadurecer e crescer até a forma adulta.
Judite abre os olhos, puxa o ar e se espanta, quando se dá conta que não está mais naquela câmara de gás. Ela está diante de um bosque, deitada na neve branca, completamente despida. Trêmula, confusa, levanta-se com um pouco de dificuldade, olha para o céu e observa os flocos de neve que começam a cair.
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