O IMORTAL

Jogou em cima do túmulo uma rosa, era o último deles que sepultava. O dia estava nublado. Deu um trocado para o coveiro, que agradeceu, mexendo o chapéu. Enquanto se dirige até o carro, olha o relógio, era quase meio dia, estava atrasado para o almoço na casa dos Ferrare. Melhor se apressar, estava com fome, pensou.
O suntuoso portão abriu, dava pra ver logo na entrada da mansão que estava cheia de convidados, todos bebendo, conversando bastante, crianças corriam e pulavam na piscina. Os donos da casa o esperavam ansiosos. Foram recebê-lo, enquanto descia do carro.
-Demoraste, meu querido estavam todos aqui te esperando, o que aconteceu?
Ele cumprimentou o casal com muita alegria, com sua marca registrada, gargalhadas altas. Falava alto, sempre passando muita alegria.
-Nada demais, meus queridos, tive que me despedir de uma pessoa que partiu. Só isso.
Todos os convidados se alegraram com a chegada dele, sempre sorrindo, gargalhando, contagiava a todos com suas gargalhadas espontâneas. Era a alegria do lugar. Sentou-se à mesa com outros convidados, enquanto perguntava sobre as coisas, coisas que sabia de cada um que conhecia, assim todos se sentiam prestigiados, ele sabia cativar as pessoas. 
O dono da casa que sabia que naquele horário com certeza ele estaria com fome, mandou o garçom que lhe serviu bebida que mandassem outro trazer um prato de churrasco pra ele. Naquela casa, ele sempre fora bem servido. Uma de suas marcas registradas era o apetite que tinha, gostava muito de comer e comia com muita vontade, deliciando-se de cada prato. Todos admiravam esse apetite dele, que era famoso, e riam quando ele dizia que não comia mais nada, porque sabiam que era mentira, que ainda ia comer algo mais, ele ria também disso. Comia bastante, não era gordo, nem magro, era esbelto. Aparentava ter trinta e cinco anos, fato que levantava sempre suspeita de todos, era motivo de piadas a respeito, porque sempre aparecia alguém de cinquenta ou sessenta anos que tinha sido aluno dele na universidade, onde é titular de cadeira.
O garçom serviu costela de porco, linguiça e um pedaço de picanha. Enquanto cortava um pedaço de carne da costela de porco, lembrou-se de uma situação que tinha vivido há muitos anos atrás. Em outro lugar, não tão agradável como aquele.
Engenho da Família Maia, interior de Pernambuco, 1888. Cara de porco, o capataz, colocou os escravos em fileira. Cento e vinte, estavam todos lá, os cortadores de cana, os que trabalhavam na casa de purgação, até mesmo os domésticos da casa grande. Tinha sumido alguns quilos de linguiça da dispensa, alguém roubara, alguém deveria pagar. Cara de porco deixa claro que quem se apresentasse não ia apanhar muito, desde que devolvesse as linguiças, mas se fosse descoberto, iria quebrar os dentes com um martelo e arrancar os dedos do pé com um alicate, então era melhor falar. Os escravos de cabeça baixa sabiam quem foi, mas ninguém denunciava, essa era a lei entre eles. Depois de alguns minutos de silêncio, o capataz vocifera, que agora seria do jeito dele, que aquilo não acontecia sem ter volta. Aponta para um escravo idoso ir à frente, era Oguilê, o responsável pela dispensa. Era um negro que tinha por volta de sessenta anos, apesar da idade e da cabeça branca ainda era muito forte. Todos murmuram e pedem piedade, tentam intervir, o velho Oguilê era pai de mais da metade daqueles escravos, foi um grande reprodutor do Engenho. Oguilê grita com todos, pedindo que parem com a choradeira, resoluto e orgulhoso vai até a frente, Cara de porco pede que ele diga quem roubou as linguiças.
-Num sei que roubou, siô
-Tu tá mentindo velho safado!
-Num sinhô, juro por Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo.
-Nego safado- Cara de porco dá um murro na cara do velho Oguilê, uma mancha de sangue sai do rosto do velho antes que caia no chão. Gritos e choros se escuta entre os escravos, alguns ameaçam atacar, mais os capangas de Cara de porco intimidam com espingardas e pistolas. O velho levanta do chão, limpa a boca suja de terra e sangue e enfrenta o capataz com um olhar feroz.
-Não bate mais nele, não bate mais no 
Olujumi filho de Alaba sai do meio da multidão com as linguiças
-Num mata papai, num mata ele, siô Cara de Porco.
O capataz pega as linguiças das mãos do rapaz franzino, olha pra elas, olha pro rapaz e com o rosto feroz desfere um soco no jovem que cai quase desacordado no terreiro. Olujumi ajoelhado, cheio de vergonha não consegue levantar a cabeça, queria morrer naquela hora. Ele que era orgulhoso por ter a confiança dos senhores da casa grande, agora estava ali naquela confusão, porque o filho tinha roubado a dispensa.
Os capangas arrastam o corpo de Olujumi, enquanto outro capataz com cara de porco desfazem o aglomerado de escravos, mandando todos trabalhar, o chicote estala no ar.
Ayodele ao saber que Cara de Porco estava com seu caçula e que ia matá-lo por roubar as linguiças da dispensa, corre até o velho capataz e se agarra nas pernas dele, implora pelo filho.
-Num mata meu fio, castiga, mas num mata, Siô
-Sai daqui, nega maluca, vai cuidar dos outros, que desse aqui cuido eu.
Como Ayodele não largava da perna do capataz, ele a chuta no estômago, ela desmaia e suas filhas e irmãs vão socorrê-la. Minutos depois ela desperta, tenta se soltar das moças, mas elas não deixam.
Cara de Porco vai até a casa grande, com o chapéu na mão, informa o coronel que já tinham encontrado as linguiças e o ladrão. O coronel que estava na varanda conversando com o padre, perguntou.
-Quem foi o atrevido?
-Olujumi, Coroné.
-Não quero ladrão na minha fazenda. Já sabe o que fazer.
Nesse momento o padre entendera as providências dadas
-Coronel que isso? Vai matar um jovem por causa de algumas linguiças?
-Não se meta Padre, hoje é linguiça, amanhã é coisa de mais valor. Ladrão bom é ladrão morto.
O padre se benze diante de tanta falta de compaixão.
Dois capangas seguram os braços de Olujumi, enquanto o terceiro quebra os dentes dele com um martelo. Depois corta os dedos dos pés e das mãos com um facão. O capataz chega depois para ver o serviço, se dá por satisfeito e como ato de misericórdia, puxa a garrucha e estoura a cabeça do rapaz.
-Joguem esse monte de lixo na ribanceira.
Alcebíades toca no ombro de Olu.
-Que foi amigo, parecia que estava congelado no tempo ao cortar essa linguiça?
-Aha, estava aqui pensando em coisas que tenho que fazer amanhã. - Disfarçou, Olu.
-Encontrei outro aluno teu.
-Ah, que legal, como é o nome dele?
-Juarez.
-Ah, lembro dele, era burrinho. Kkkkkkkkkkkkkkk
-kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk – Os dois concordam em gargalhadas
-E como ele tá? Tá bem?
-Está bem agora, mas teve um princípio de infarto duas semanas atrás.
-Nossa, tão jovem
-Um jovem de 55 anos.
-Aliás tu tinha quantos anos quando deu aula pra ele?
-Comecei a dar aula muito novo pra me sustentar. Vai ter jogo da seleção agora tarde -Desconversa Olum.
Como sempre, Olum só saía depois de todos os convidados, conversava um pouco mais com aquela família que o tinha aceito como parte dela. Sentia-se grato por isso. Sentia-se de alguma forma acolhido por eles. Isso o deixaria motivado, pronto para uma semana dura de trabalho na universidade.
Enquanto dirigia, lembrou-se do Juarez que Alcebíades tinha lhe falado. Lembrou que era um aluno brincalhão, sempre sorridente, falava pelos cotovelos, na época usava cabelos compridos e só ia pra faculdade de bermuda e chinelos. Não era muito aplicado nas aulas, talvez por não parar quieto. Era danado, sorri Olum. A atenção dele volta pra pista, quando um carro que vem no outro sentido, ofusca sua visão devido à luz alta. Esse clarão…
Olum abre os olhos e vê um clarão em sua frente, era o sol à sua frente. Olhou para os lados estava no lixão que ficava na ribanceira. Olhou para suas mãos, seus dedos estavam lá. Colocou a mão na boca, sentiu os seus dentes. Estava sonhando?! Se era um sonho, por que estava no lixão da ribanceira, onde se jogava bichos e escravos mortos do engenho?! Levantou-se com cuidado, mal podia acreditar, estava vivo, estava inteiro.
Seu estômago queimava, sentia muita fome, senti muita vontade de comer, estava faminto. Um pouco mais à frente, tinha uma mangueira carregada de mangas maduras, subiu na árvore e comeu tudo que encontrava madura, depois se passou pra aquelas que estavam amadurecendo e por último as que estavam de verdes ainda. Ainda tinha muita fome, esgueirando-se foi até o milharal que ficava ali perto e começou a comer as espigas que encontrava. Daya que tinha ido colher algumas espigas para levar pra fazenda, encontra um rastro de sabugos destroçados na plantação, segue o rastro e seus olhos se arregalam ao se deparar com Olum. Cai dura no chão. Olum ao ver a irmão desmaiada se desespera, tenta reanimá-la. Dando tapinhas no rosto, quando ela olha Olum na sua frente, ela grita e Olum sabendo que o grito chamaria atenção de todos, sai correndo em direção a mata.
Já em seu apartamento, Olum observa as paredes cheias de quadros de pessoas famosas, os móveis antigos, os bibelôs decorativos que guardavam recordações de pessoas há muito tempo mortas. Ele se agarrava aquelas coisas, pra não deixar morrer em sua memória tantas pessoas queridas que a morte levara.
Antes de deitar, pensa mais uma vez no enterro de Janílson, tataraneto do coronel Maia. O último de uma linhagem que só existia agora na cabeça dele.




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